terça-feira, 12 de setembro de 2017

Colcha de Retalhos - Monteiro Lobato


Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.
A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:
— Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu.
“Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda…
“Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me ‘óó aquina’…
“Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?
“Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!
“Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.
“Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”
A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.
— E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.
Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.
Depois:
— Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.
— Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.
— Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.
— É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?
Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:
— Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.
Calou-se, a lacrimejar, trêmula.
Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.
Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!…
E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.
Ela por fim quebrou o silêncio.
— Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.
E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.
Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.
Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?
Pieguices…

1915 - A Colcha de Retalhos - Monteiro Lobato


Revista Prosa Verso e Arte


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Nada realmente se perde nessa existência, O que não se sabe às vezes se sente. O que se sente às vezes não se entende. O que se entende às vezes não se sabe. O que se sabe às vezes não se domina. O conhecimento é porta aberta para outras portas de saberes Obrigado por deixar aqui seu comentário e/ou suas impressões.